A Nicarágua é um país surpreendente. Castigado por terromotos, guerrilhas e ditadores sanguinários, a democracia é capítulo relativamente recente na sua conturbada história, e o desenvolvimento social e econômico está bem abaixo do da maioria dos países latino americanos.
Manágua, a capital, é extremamente pobre. No meio de ruas esburacadas ou sem asfalto, protestos de grupos indígenas, vendedores de manga verde com sal e casebres simples, aparece de vez em quando um prédio um pouco mais moderno ou uma loja ou restaurante mais finos. Há apenas um shopping center na cidade. E é nestes pontos isolados que encontramos aqueles que dominam o país, fato que se reflete até mesmo nos concursos de beleza lá realizados.
Março de 2003, Manágua, Nicarágua. Cheguei 2 dias antes do Miss Nicarágua, fui convidado como jurado. Deixei as malas no hotel e me chamaram para assistir a um ensaio. O grupo de 12 candidatas nem de longe refletia a realidade da população daquele país. Moças na sua maioria bonitas, dominando 2 ou 3 idiomas, de famílias tradicionais. Mas algo me chamou a atenção: talvez por ser a única candidata usando um sapato de plataforma que fazia um tremendo barulho, enquanto todas as demais tinham nos pés seus confortáveis Nikes & Cia., foi a primeira que parei para observar. Era uma morena linda com um sorriso encantador e uma pureza nos olhos rara de se encontrar em qualquer lugar, quanto mais em um ambiente de competição.
De repente, um grito estridente saiu da boca da coreógrafa: "Maricela!!!
No te lo dije que todas tenian que venir a ensayar en sapatillas (tênis)??
Anda a cambiarte!!". E então a moça de olhos expressivos e sorriso encantador baixou a cabeça e desapareceu. Mais tarde soube que ela havia ido chorar, uma vez que tinha vergonha de admitir que não tinha tênis, que aquele era o seu único par de sapatos.
Maricela tinha na época 21 anos. Moça pobre de uma pequena cidade chamada Ocotal, tinha 8 irmãos e ajudava a mãe trabalhando em um escritório durante todo o dia. A noite cursava faculdade de informática. Era a única candidata sem um sobrenome importante, e uma de duas que não residiam em Manágua. Sua beleza se sobrepos a tudo isso e ela passou pelo casting da agência organizadora do concurso.
Quando percebi que o fato de ser pobre e "filha de ninguém" não a colocava nem entre as favoritas a alcançar uma das 5 vagas de finalistas, comecei a minha "campanha". Durante a entrevista pessoal com as candidatas tive a oportunidade de conversar com ela e tentar fazê-la acreditar que não era menos que ninguém ali, que muito pelo contrário, era especial e podia chegar longe na vida.
Convenci uma das "chaperonas" a ir atrás de um tênis para a menina, principalmente quando soube que a bruxa coreógrafa sabia da sua condição, e fazia questão de humilhá-la. Em um jantar com os organizadores do concurso, comentei que estava impressionado com a beleza da Maricela, assim como a de outras duas candidatas. Fez-se um silêncio cortante, parecia que os havia ofendido, o que vim a entender mais tarde: entre as minhas favoritas não se encontrava Marynes, filha de um milhonário local que residia em uma mansão no alto de uma colina em ponto nobre de Manágua.
Marynes tinha um belo corpo, era muito educada e já havia representado a Nicarágua em diversos concursos internacionais, inclusive no Miss Internacional. Um ano antes havia representado seu país no Miss América Latina, em Manágua. Também não se classificou. Faltava a ela beleza facial e um pouco de inteligência, e no meu ponto de vista beleza do rosto em um concurso de beleza é fundamental.
Quando a televisão local me entrevistou perguntando o que eu buscava na nova Miss Nicarágua, fui enfático: "
Busco a una chica que tenga el rostro y la sonrisa de Nicarágua".
Em dado momento fiquei sabendo da estratégia que estava montada. Dificilmente alguém tiraria o título de Claudia ou Haizel, de fato as candidatas que terminaram em primeiro ou segundo lugar. Marynes terminaria em terceiro lugar, e como já havia participado do Miss Internacional (título que supostamente caberia à terceira colocada), proporiam uma troca de faixas com aquela que ficasse em segundo e fosse designada como Miss Nicarágua Mundo. Maricela não era esperada nem entre as 5.
Chegou o dia do concurso. Éramos 7 jurados e como as notas das entrevistas apareciam no telão durante a apresentação de cada candidata, a situação ficou clara: os três jurados de uma extremidade eram elististas: apoiavam Marynes e davam notas baixas à Maricela; os três do lado onde eu estava apoiavam Maricela e eram indiferentes (porém justos) com Marynes.
Chegou a prova de traje de banho. O meu "10,0" para Marisela e "8,3" para Marynes causou espanto em muita gente, e no desfile de trajes de noite ficou confirmado que aquilo havia se tornado uma guerra. Quando chamaram as 5 finalistas, além de Claudia e Haizel, chamaram os nomes de Marynes, Yamilla (protagonista àquela altura do campeonato...) e Maricela! Ela havia chegado lá.
Após uma rápida entrevista final, viria a batalha final. Era evidente o lobby dos dois lados da comissão julgadora com o tal "jurado neutro". Como eu sabia que Claudia e Haizel receberiam votos em 1 e 2 lugares de todos os jurados, e portanto meu voto não afetaria o resultado final, deixei Haizel em segundo, Claudia em terceiro lugar e coloquei Marisela em primeiro. Marynes era minha quinta opção. Confirmando o que imaginei, os três jurados do lado de lá colocaram Yamilla em quarto e Marisela em quinto e o meu voto de primeiro lugar para Maricela foi suficiente para garantir a ela a terceira colocação. A votação de Maricela e Marynes ficou da seguinte forma:
Marynes 3 3 3 3 5 5 5= 3.8
Maricela 5 5 5 4 3 3 1= 3.7
Pela diferença de apenas 0.1 ponto, Maricela vencera Marynes. No momento em que chamaram Marynes em quarto lugar, ouviu-se um sonoro "oooohhhhhhh" na platéia. Como podia uma pobre desconhecida permanecer na briga pelo título enquanto a filha da tradicional família Arguello estava fora?? As candidatas atrás se renderam ao momento inesperado e comemoraram o acontecido em absoluto estado de choque. Maricela chorou de emoção com a terceira colocação e é claro, o troféu de Miss Global Beauties. O "golpe" foi tão grande, que não parecia importar qual das outras duas seria Miss Nicarágua Universo ou Mundo (diga-se de passagem, títulos absolutamente merecidos).
Quando estávamos indo embora, um segurança se aproximou de mim e me acompanhou até o carro que me levaria de volta ao hotel, onde aconteceu a festa de coroação. Segundo ele, seria melhor eu não participar da festa. O homem foi bem direto: "
Señor, el papá de Marynes le quiere matar. A lo mejor esperas la hora de tu vuelo en tu habitación".
Confesso que fiquei um pouco assustado, mas não quis nem saber. Fui a festa e acabei me divertindo vendo a alegria daquela "Cinderela Nicaraguense", que dançou toda a noite e foi pela primeira vez notada pelas suas companheiras e por muitas outras pessoas. Tirou mais fotos com os fãs e para a imprensa que as próprias vencedoras.
Os organizadores do concurso não gostaram, e acreditem se puderem, preferiram não enviar uma Miss Nicarágua ao Miss Internacional a enviar Maricela, que acabou indo ao México, onde participou do Miss América Latina.
Em Ocotal, seu "pueblo" natal, Maricela recebeu a chave da cidade e é considerada filha ilustre da cidade até hoje. Trabalha como modelo, se formou, e atua também na área de informática.
No final da festa me abraçou forte e com lágrimas nos olhos e aquele sorriso que derrete qualquer coração, me disse: "Gracias Sr. Fontes, nunca me olvidare de esta noche, y ahora si creo en mi!".
Naquela noite a ditadura deu espaço à democracia da beleza e um terceiro lugar foicomemorado como se fosse primeiro.
Que viva la verdadera sonrisa de Nicarágua!
Para conhecer as candidatas do Miss Nicarágua 2003 acesse:
http://www.missnicaragua.com/03Nica_Delegadas.htm