Blog do Henrique Fontes

Dedico esse espaço a relatos sobre minhas andanças cobrindo e produzindo concursos, outras paixões, como o futebol e o esporte em geral, ou quaisquer outros tópicos que me venham a cabeça. Espero que curta.

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27.2.07

A muito peculiar Deusa...

Deusa é baixinha, gordinha, tem o cabelo curto e mal cortado, a pele morena. Os traços do rosto não são, digamos assim, os mais finos. Ela é carrancuda e passa por você com ares de "humm sem-vergonha, eu sei quem tu é e tu não sabe de nada!".

O Consulado do Brasil em Miami era repleto de personagens interessantes, trabalhar lá me fazia sentir parte do elenco de "Que Rei Sou Eu?". Lembra daquela novela do começo dos anos 90, que satirizava as barbaridades cometidas então e até hoje por nossos governantes? Pois é, como representante do Brasil na região sul dos EUA, o nosso consulado era uma miniatura do nosso governo.

Alguns realmente trabalhavam, muitos tinham o rei na barriga e outros tanto brincavam de escritório. Para que o horário fosse respeitado tínhamos que bater ponto, que na real só valia para nós, pobres e insignificantes peixes pequenos.

Poderia passar uma semana descrevendo tudo o que presenciei por lá, e até penso em, aos poucos, deixar aqui alguns relatos, mas hoje eu vou falar da Deusa, cujo nome verdadeiro nem sequer é esse...

Deusa é uma mulher de origem simples, porém de uma arrogância que estou para ver igual. Antipática e incompetente, ela não parava em departamento nenhum. Sua função era investigar a vida alheia. Logo que comecei a trabalhar lá, em 1996, Deusa aproveitou um momento em que eu estava só na minha sala e abriu a torneira de abobrinhas: falou mal de todo mundo, do motorista ao cônsul-geral, e me alertou: "Mininuuu, toma cuidado comigo!! Quem manda nessa merda aqui sô eu!".

Por mais que aquilo viesse da boca de uma mulher estranha, mal vestida e desorientada, confesso que fiquei em dúvida. Afinal, aquele era um mundo especial, diferente, onde tudo podia acontecer. No entanto, também é óbvio que caí na real rapidinho, e resolvi me fazer de louco, às vezes dando corda ao besteirol na "grande chefona". Seguem alguns episódios:

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Lucinha era uma das minhas amigas e colegas mais queridas. Paraibana das boas, trabalhava bem e não se conformava com injustiças. Também era daquelas que falavam o que pensavam, talvez até mais do que deveriam.

Seiva era um oficial de chancelaria. O homem era verde, tinha olheiras horríveis e agia como se fosse algum duque ou qualquer coisa do tipo. Era uma espécie sapo gigante puro sangue. Galanteador, qualquer mulher que passasse por ele ouvia um elogio, das mais lindas à Deusa.

Naquela época Seiva trabalhava em uma mesa próxima a da Lucinha. Deusa passou entre os dois, caminhando como um dinossauro (às vezes, para completar, ela dava uma coçadinha na periquita), com papéis na mão e com seus resmungos indecifráveis. Foi quando Seiva soltou:

"Deusa, Deusa... Com sua aura de rainha, seus olhos de jaboticaba e caminhar suave e sensual... Ai minha Deusa...".

Lucinha, inconformada, soltou: "Deus do céu, ou você bebeu, ou é muito hipócrita! A mulher parece uma geladeira!".

Que descrição perfeita! Deusa era mesmo uma geladeira: Retangular por fora, gelada por dentro.

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Certa manhã eu resolvi colocar pilha na Deusa: "E aí Deusa, com este seu perfil 'morena jambo', você fazia muito sucesso no Itamaraty?", perguntei.

Como quem procura, acha, a resposta chegou fulminante:

"Miniiiinu, tu não sabe de nada! No Itamaraty os homi brigava pra mi pegá! Mas eu não dava mole pra ninguém! A Deusinha aqui caminhava pelos corredor daqueli lugá, e os homi chegava a por espelhinho na ponta do sapato pra vê a minha aranha!"

Eu não resisti: "Mas vem cá: você não usa calcinhas?"

"Meniiinuuu, tu não sabe de nada...".

E neste caso preferia mesmo continuar sem saber.

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O Itamaraty conhecia bem aquela figura. Tanto que ela sempre era sempre mandada para bem longe, inclusive para países em guerra. Deusa já serviu em Angola, Iraque, Síria, Marrocos e Tailândia.

O tailandês é conhecido como um dos idiomas mais complexos do planeta. Aprendê-lo requer muito estudo, dedicação e algo de Q.I.. Em certa ocasião um tailandês foi ao consulado pedir informações comerciais, e por algum motivo passou por ela. Cheguei a olhar de longe e pensar: "Em que idioma será que eles estão se comunicando?".

O rapaz foi encaminhado ao setor comercial e la veio ela: "É... a Deusinha aqui num é fraca não... Acabo de ver que não perdi todo meu tailandês..."

Cleiton, funcionário do setor de vistos caracterizado pela sua ironia, respondeu: "É... aproveita que você achou o seu tailandês e continua procurando. Quem sabe você não encontra também o seu português?".

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Deusa no Iraque. Segundo ela, logo que chegou ao Iraque, os oficiais de imigração sempre que pegavam o seu passaporte, comentavam algo entre si em árabe e caiam na gargalhada (provavelmente diziam: "Não é no Brasil que só tem mulheres gostosas?? KÁ KÁ KÁ!!). E continuou contando...

"Então, a Deusinha aqui, mesmo sem estudar, em dois meses já dominava o idioma árabe. Certa ocasião cheguei de viagem a Bagdá e pensei - 'agora vamos ver do que eles tanto riem'. E aquilo se repetiu. O que eles diziam em árabe era - 'Eita tesão de mulé!! Gostosa pá caralho! KÁ KÁ KÁ' (fiquei imaginando como seria 'eita' e 'tesão' em árabe). Miniiinu, dei um soco na cara daquele filho da puta, que passei a ser a única mulé respeitada no Iraque! Depois daquilo, os homi me esperava com tapete vermelho e quando eu passava ressitavam - 'Alá Deusa!! Alá maha Deusa!! Deusa Babalá!!'.

Como diz a minha amiga Lea, pior que ouvir isso é ser surdo.

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A pior de todas. Certo dia estávamos eu e a Jeannie (amigona e excelente funcionária, também voltou para o Brasil) trabalhando e chegou a Deusa. O que vem agora, é chocante. Desafia a lógica, o bom senso, o real. Deusa começou assim: "Miniiinu, tu sabia que já fui loirinha dos óio azul e péle clarinha? Eu era uma tchutchuquinha..."

É verdade que aquilo merecia passar despercebido (Jeannie chegou a fazer uma cara de quem rogava: "Pelo amor de Deus, não pergunte nada!"), mas eu não resisti...

"Sério? E quando ocorreu a transmutação?"

"Eu estava no Marrocos. Samara era pequena (a filha bonita que desafiou a genética e venceu) e estávamos numa praia. Então escutamos um estrondo e tudo tremeu!! Era Chernobil".

Quando a gente achava que já tinha ouvido tudo, bobagem, vinha uma bomba dessas (neste caso, literalmente). Para quem não sabe, são milhares os quilômetros que separam o Marrocos da Ucrânia, onde estava localizada a usina de Chernobil. Mas ela ouviu a explosão, e isso não era tudo...

"Ventava muito, e em 15 minutos a radiação chegou e pegô nóis na praia! Saímo tudo correndo, mas já era tarde. No dia seguinte eu acordei, me olhei no espelho e estava morena jambo. Daí comecei a tomar cortisona e engordei. Foi incrível".

A cortisona deve ter sido aplicada no cérebro.

De fato. Incrível. A ex beleza nórdica, vítima de Chernobil. Nós não sabíamos se ríamos, se contestávamos. Optamos pelo silêncio.

"Mas o mundo tá perdido, vocês não sabem de nada...", e saiu da sala.

Quando se trata da Deusa, põe perdido nisso.

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