14 - Arandú
O Estopa era simplesmente impossível. Não me lembro da raça dele, mas aquele cachorro devorava tudo. Morávamos na rua Arandú, e um dia meus pais decidiram dar o Estopa. Quando voltamos da escola, ele não deveria mais estar lá, mas já de longe ouvimos os seus latidos. Havia sido devolvido em menos de 4 horas!
Lembro do dia em que eu rolei escadaria abaixo. Botas novas, chão encerado, fudeu. Ao chegar no último degrau lembro claramente do desespero da minha mãe. Apesar do susto, e do tombo impressionante, não sofri um arranhão sequer.
Assim como o Estopa, eu era impossível. Uma vez minha tia avó Helma chegou de Porto Alegre para passar uns dias conosco. Ela veio com a minha avó e sua irmã gêmea, vó Tetê. Tanto azucrinei, que minha mãe me pegou pelo braço, me jogou no carro, e me levou até a porta de um colégio interno (supostamente). Meu desespero era tanto, e o susto foi tão grande, que devo ter me comportado por uns 2 dias depois disso. Era mais difícil se desfazer de mim do que do Estopa.
Engraçado lembrar da festa de aniversário do meu pai de 33 anos, tendo eu hoje 37. Mas lembro de alguns detalhes. Lembro também da minha festa de 5 anos. Eram "as festas". Minha mãe escolhia um tema, ou eu escolhia, e tudo era perfeito, desde o bolo, até a decoração, as brincadeiras. Eu fui uma criança de sorte (e impossível). Ah! Esqueci de dizer que me lembro claramente da minha decepção ao final daquela festa. Na cabeça de uma criança de 4 anos, fazer 5 significava "ficar grande", crescer. Subi a escada com 5 anos, mas do mesmo tamanho, de cabeça baixa e emburrado.
Eu tinha uma espécie de mesa-carrinho na cozinha onde eu comia. Desde aquela época eu catava cada cebolinha no arroz e no feijão. Diziam: "Quando crescer vai passar essa frescura". Cierto!
Às vezes minha mãe levava a mim e ao meu irmão, ainda muito pequeno, para ver um show de mágica perto de casa. No geral as crianças adoravam. Eu achava tudo muito chato, sem graça. O mesmo sentimento eu tinha em relação ao circo. Não entendia o fascínio das pessoas por aquilo. Hoje até entendo, mas continuo sem achar graça. Aliás, o único truque de mágica que eu gostava era o de cortar uma camarada ao meio. Como será que eles fazem isso?
Tinha feira sempre em um determinado dia da semana. Era obrigado a ir, mas valia a pena para poder comer o pastel no final. Sempre de queijo, já que o de carne, "era feito com carne de gato". Sabe que até hoje eu fico achando que é mesmo?
Da tv eu tenho duas lembranças remotas: o Vila Césamo e o Sítio do Pica Pau Amarelo (quando esse apareceu já não estávamos mais na Arandú). Meus pais criavam alternativas para a televisão, e sou grato a eles por isso.
Os amigos mais próximos eram a Renata, da casa ao lado, e o Rodrigo, filho do Carlos Aurélio e da Maria do Carmo. Tinha as irmãs dele, que eram menores: a Dani e a Carla. A Maria do Carmo era a cara da mãe do seriado "Married With Children". Ouvi em certa ocasião uma conversa entre a minha mãe e a Maria do Carmo sobre os casos amorosos da segunda. Chocante. Com 5 anos eu passava a saber que aquilo existia. Mais chocante ainda: Carlos Alberto e Maria do Carmo seguem casados até hoje! Já o divórcio dos meus pais, começou a se desenhar naquela casa.
Sábados infernais: acompanhar minha mãe ao cabelereiro. A que cortava o cabelo dela se chamava Loyde. Nome de companhia aérea boliviana falida. Como disse a minha irmã um dia desses: "Quem se chama Loyde nesse mundo???". O cheiro do salão, a mulherada fazendo unhas, cortando o cabelo, fofocando. Aprontava tanto naquele lugar, que sempre o retorno a casa me rendia umas palmadas bem dadas.
Dizem que eu morria de ciúmes do meu irmão, que chegou quando eu tinha 3.5 anos. Dividir não era comigo. Conta minha mãe, que uma vez, enquanto passava o caminhão de lixo, eu gritava da janela do quarto dela: "Leva esse guri, pelo amor de Deus!". Cacete, como é que me aguentavam?? rss
Minha irmã foi concebida naquela casa, mas nasceu na nossa residência seguinte. Aliás, não parávamos em lugar nenhum. Minha mãe chegava em uma casa ou apartamento, reformava tudo, se cansava, e lá íamos nós...
Também na Arandú tive minhas primeiras noções de religião. Minha avó Lucinda me presenteou com um Novo Testamento ilustrado para crianças. As ilustrações eram meio assustadoras, e o diabo aparecia constantemente. Quer intimidar uma criança? Compre um livro desses, fale sobre Deus e o diabo. Tente explicar porque Jesus morreu na cruz, e que ele, Deus, e o Espírito Santo (!!!!) são um só. Então leve a criança para a missa, e após comungar, diga que acabou de receber o "corpo de cristo". Nesse momento da vida começam as nossas noites de insônia.
Minha avó fazia isso muito bem. Eu ficava aterrorizado. Uma vez ela me levou para ver "Marcelino, pão e vinho". Pra que! Na hora em que Jesus tomou vida e desceu da cruz, eu pensei que ia com ele! Tremia já debaixo da cadeira do cinema. Até hoje não tenho coragem de assistir esse filme de novo.
Como podem ver, a religião entrou na minha vida de forma bastante suave e racional. Minha mãe brigava com a minha avó e nos dizia que o diabo não existia. Tarde demais. Estrago feito, todo mundo em pânico.
Acho que foram 3 anos naquela casa, dos 2 aos 5 e tanto. No geral, as memórias são boas. Hoje aquela casa não existe mais. Nem a nossa, nem a do Carlos Alberto (que segue casado com a Maria do Carmo). Só a do Zé e da Cristina (pais da Renata) segue lá. E com eles dentro.
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14 dias. Ansiedade e saudades.
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